2010-02-04

Faces visíveis

Este tema da eventual proibição da burqua e do nikab em França tem criado uma polémica que me tem interessado.

Passo a destacar os argumentos que têm aparecido contra a proibição que:
1) não passa de uma intolerância a uma religião (muçulmana) correspondente a uma minoria
2) é uma reacção xenófoba a um costume dos imigrantes
3) afectará pessoas de nacionalidade francesa, ao contrário do que pensam as pessoas que dizem para “irem para a terra deles”
4) inibe a possibilidade que garante a algumas mulheres da Europa poderem sair à rua pois, caso não possam usar a burqua no espaço público, teriam que ficar fechadas em casa
5) impediria o acesso de algumas mulheres da Europa a hospitais e a outros serviços públicos
6) é uma atentado à liberdade de cada um andar vestido como lhe apetece
7) é desajustada porque há muito pouca gente a usar burqua
8) é a resposta pretendida pela provocação do seu uso, sendo portanto desadequada

Passo a rebatê-los um por um:

Em relação ao argumento (1) de se tratar de uma costume religioso tenho dois argumentos, em primeiro lugar duvido que se trate de uma prática religiosa essencial ao Islão, como já afirmei em post anterior, havendo apenas uma coincidência geográfica entre zonas onde existe este costume da burqua e zonas de implantação do Islão. Diga-se de passagem que o Islão não se distanciou nem proibiu o seu uso mas existem países com milhões de mulheres muçulmanas onde não se vêm burquas pelo que o seu uso não pode ser essencial à religião muçulmana. Mais importante do que este argumento é a submissão necessária das práticas religiosas ao enquadramento jurídico dos países da União Europeia. Para usar um exemplo simples, os sacrifícios humanos praticados pela religião Maia não seriam tolerados na Europa pelo facto de serem de índole religiosa pois violam leis existentes, neste caso de não ser morto.

O argumento (2) tem a fraqueza habitual e batoteira de classificar de medo irracional (fobia) uma oposição a um costume exterior (xénon). Os costumes existentes numa sociedade resultam de uma história longa de tentativa e erro e embora possam representar soluções erradas ou desadequadas a novas condições merecem, em princípio, maior consideração do que os que são trazidos por imigrantes. A sociedade de acolhimento forneceu melhor condições de vida do que a sociedade que originou a emigração pelo que os seus costumes merecem à partida maior crédito. Assim como uma tradição da sociedade de acolhimento não é forçosamente boa, tão pouco o será a tradição de uma comunidade imigrante.

O argumento (3) pode até ser interpretado de forma algo maldosa, ao discriminar entre franceses e emigrantes, mas limitar-me-ei a dizer que a proibição deve ser aplicada no território da França, para preservar as regras de convívio ainda dominantes nesse território, não é relevante se vai afectar franceses ou emigrantes.

O argumento (4) é assustador ao admitir a existência de “prisões privadas” em território francês, i.e. as casas particulares de pessoas que não poderiam sair à rua sem burqua. O Estado tem o monopólio das prisões.

O argumento (5) é parecido ao argumento (4). Nada mais fácil para quem use uma burqua e queira aceder a serviços públicos: basta tirar a burqua.

Quanto ao argumento (6), de cada um dever ser livre de andar como lhe apetece, tenho dois contra-argumentos: o primeiro é que é esmagadora a probabilidade da mulher não ter tomado a decisão de usar a burqua de livre vontade. Não se trata aqui dum dilema de presunção de inocência, sendo melhor deixar um culpado em liberdade do que prender um inocente. Trata-se de avaliar o que será melhor, se proteger a maioria das mulheres que é forçada a usar burqua ou se respeitar o desejo da minoria que a pretende usar. Mesmo admitindo que haja mulheres que, de sua livre vontade, pretendam usar a burqua, considero que essas mulheres precisam de ser contrariadas, a bem da qualidade do relacionamento com os outros elementos da sociedade em que se inserem. Sinto-me com o direito a ver o rosto de cada pessoa que partilha comigo o espaço da cidade. Se essas pessoas não suportam ser olhadas por outros seres humanos poderão pedir auxílio médico ou ir para uma zona deserta onde vejam muito pouca gente.




Para ilustrar o aspecto doentio do relacionamento com ocultação de identidade escolhi a figura acima, mostrando uma reunião de uma sociedade secreta de malfeitores, do álbum do Tintin, “Les Cigares du Pharaon”.

Quanto ao argumento (7), referindo que há pouca gente, uso o imperativo categórico, o que interessa não é quantas pessoas usam burqua mas se queremos viver numa sociedade em que uma quantidade apreciável de pessoas o faça. Reconheço aqui que há considerações práticas importantes, por exemplo não vejo necessidade em fazer uma lei que proíba atar os pés das meninas para os deformar, como se fazia na China, dado que não há notícia dessa prática desde há muitos anos.

Quanto ao argumento (8), reconheço-lhe alguma validade, no entanto preferiria viver numa sociedade em que as pessoas pensassem que nem valeria a pena ir para a rua com burqua porque essa indumentária seria imediatamente apreendida e substituída por outra discreta mas que assegurasse a visão do rosto. Na realidade surpreende-me que não exista em França uma lei que proíba a ocultação do rosto em espaços públicos, por uma simples questão de segurança, como ilustram aqui o Tintin e o capitão Haddock, disfarçados de alegres Turlurons, prestes a executar um golpe de estado no álbum “Tintin et les Picaros”.

Para finalizar deixo as fotografias iluminadas (da altura praticamente de uma pessoa) que orientam as pessoas no Centro Comercial dos Olivais quando se dirigem ao WC. Interrogo-me se continuaríamos a conseguir distinguir os géneros caso o comprimento do cabelo fosse o mesmo em cada figura.




Mas ao ver estas caras consolo-me de ter nascido numa civilização em que as faces são normalmente visíveis e não ocultas.

7 comentários:

abrunho disse...

Continuo a matutar nesta questão. A guerra dentro de mim é a minha repulsa em que o Estado legisle sobre como as pessoas se vestem, mas por outro lado a minha repulsa por este acto anti-social. A minha pergunta acaba sempre neste ponto: "Pode o Estado legislar em assuntos de educação?" Sermos educados é uma forma de podermos viver agradavelmente em sociedade. Aquele teu ponto de uma sociedade dinâmica que por tentativa e erro tece um conjunto de regras de boa convivência. Todos nós fomos educados nestas regras. Mas se há um conjunto de pessoas que vêm com regras diferentes que são contrárias a essa boa convivência, que fazer? Deixar o Estado regular ou atermo-nos à pressão social? Eu vivi uns tempos nos EUA onde se prefere a segunda via e devo dizer que ter uma matilha daquela gente contra ti deve ser assustador. Eu tive de lidar com caras feias e já me bastou para respirar de alívio quando o meu avião pousou em Frankfurt. Não sei. Vivo em dúvidas.

jj.amarante disse...

Abrunho, logo existes.

abrunho disse...

prestigias-me muito para lá do meu valor :)

Luísa A. disse...

Jj.amarante, estou inteiramente de acordo consigo. Acrescento que a obrigatoriedade do uso da burka só existe onde a condição feminina é amesquinhada a níveis de servidão e de indignidade absolutamente inaceitáveis à luz do padrão de civilização que temos no Ocidente. Deixem entrar essas mulheres sem os seus maridos, e vejam quanto tempo levam (até aquelas que defendem acerrimamente o traje) a adoptar a nossa moda… na versão minimal. :-)

Helena Araújo disse...

Belo texto!
O (4) em especial: clap clap clap clap
E também concordo inteiramente com a posição defendida no ponto 6, especialmente a parte da "qualidade do relacionamento com os outros elementos da sociedade em que se inserem". Entre o interesse de uma mulher querer andar completamente tapada na via pública, e o meu hábito enraízado de ver a cara de quem partilha comigo a cidade, como ficamos?

Contudo, há alguns detalhes com os quais não concordo muito:

(2) Não podemos confundir êxito económico e "bondade". Não é por numa determinada sociedade haver mais dinheiro e trabalho que os seus hábitos são dignos de maior crédito. E os imigrantes não têm de aceitar tudo o que é hábito dessa sociedade só porque encontraram nela trabalho. Um imigrante não é um elemento social de segunda classe.

(3) "preservar as regras de convívio ainda dominantes nesse território": as regras de convívio são objecto de negociação, ou impera a lei de quem estava primeiro?
Dito isto, deixe-me vincar que odeio a visão de um mulher escondida sob uma burqa. é definitivamente uma "barreira".

(5) o argumento "basta tirar a burqa" é um bocadinho cínico. Em nome de quê se impõem condições às mulheres para acederem a determinados serviços públicos básicos?

jj.amarante disse...

Olá Helena!

Sem querer entrar em pingue-pongue eu diria:

(2 e 3) a emigração portuguesa maciça nos anos 60 do século XX foi realmente de uma sociedade com muitos bloqueios para as sociedades mais dinâmicas do centro da Europa, julgo que os emigrantes portugueses dessa época ganharam em não manter muitos ou alguns dos seus hábitos e que o mesmo se poderia aplicar aos emigrantes agora oriundos de países predominantemente islâmicos. Claro que nem todos os hábitos da sociedade de acolhimento serão melhores mas em caso de grande incompatibilidade devem prevalecer os desta pois, caso contrário, tratar-se-ia de uma invasão em vez de uma migração. Os portugueses dizem: em Roma sê romano

(5) reconheço que "basta tirar a burqua" é simplificador mas se resolvermos o problema da imposição do marido restam as mulheres que pretendem andar de burqua. Nos hospitais, as nossas mães e avós já tiveram que ultrapassar os excessos de pudor quanto ao corpo que lhes tinha sido incutido na educação então dominante. Se elas conseguiram nessa altura, agora será mais fácil.

Helena Araújo disse...

Sem pretender entrar em pingue-pongue ;-) eu colocaria apenas uma questâo: porquê aceitar a regra de "em Roma sê romano"?
Roma não é feita por todos os que a habitam?
Em compensação, o Erdogan veio à Alemanha dizer que a assimilação cultural é um atentado aos direitos humanos.
Há nesta posição algo com o que eu não concordo de modo algum: ele está a recusar aos turcos residentes na Alemanha a liberdade de se deixarem interpelar e influenciar por outros modos de viver.
Em todo o caso, a questão é interessante: em Roma sê romano, ou sê fiel a ti próprio e a uma busca dinâmica e em processo dialético da tua identidade?